Igualdade de Gênero, Raça / Etnia na Educação Formal

"Tente mover o mundo; o primeiro passo será mover a si mesmo."
Platão

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Texto: Faca sem Ponta - Galinha sem Pé (Ruth Rocha)

Faca Sem Ponta - Galinha Sem Pé
(Ruth Rocha)

 Esta é a história de dois irmãos.
Com eles aconteceu uma coisa muito esquisita, muito rara e difícil de acreditar.
Pois eram dois irmãos: um menino, o Pedro. E uma menina a Joana.
Eles viviam com os pais, seu Setúbal e dona Brites.
E os problemas que eles tinham não eram diferentes dos problemas de todos os irmãos.
Por exemplo...
Pedro pegava a bola para ir jogar futebol, lá vinha Joana:
- Eu também quero jogar!
Pedro danava:
- Onde é que já se viu mulher jogar futebol?
- Em todo lugar.
- Eu é que não vou levar você! O que é que meus amigos vão dizer?
- E eu estou ligando pro que os seus amigos vão dizer?
- Pois eu estou. Não levo e pronto!
Joana ficava furiosa, batia as portas, chutava o que encontrasse no chão, fazia cara feia.
Dona Brites ficava zangada:
- Que é isso, menina? Que comportamento! Menina tem que ser delicada, boazinha...
- Boazinha? Pois sim! - respondia Joana de maus modos.
Ás vezes Pedro chegava da rua todo esfolado, chorando.
- Que é isso? - Espantava-se seu Setúbal. - O que foi que aconteceu?
- Foi o Carlão! foi o besta do Carlão! Me pegou na esquina - choramingava Pedro.
Seu Setúbal ficava furioso:
- E você? O que foi que você fez? Por acaso fugiu? Filho meu não foge! Volte pra lá já e bata nele também. E vamos parar com essa choradeira!
Homem não chora!
Pedrinho desapontava:
- Eu estou chorando é de raiva! É de ódio!
Joana se metia :
- Homem é assim mesmo! Quando a gente chora é porque é mole, é boba, é covarde. Agora, homem quando chora é de ódio...
Pedro ficava furioso, queria bater na irmã.
Dona Brites entrava no meio:
- Que é isso, menino? Numa menina não se bate nem com uma flor...
Pedro ia embora, pisando duro:
- Só com um pedaço de pau...
E as brigas se repetiam sempre.
Quando Joana subia na árvore para apanhar goiaba, Pedro implicava:
- Mãe, olha a Joana encarapitada na árvore.
Parece um moleque!
- Moleque é o seu nariz! - gritava Joana. - Você toda hora está em cima de árvore, por que é que eu não posso?
- Não pode porque é mulher! Por isso é que não pode. E não adianta vir com conversa mole, não! Mulher é mulher, homem é homem!
Quando Pedro botava camisa nova e se olhava no espelho, Joana já implicava:
- Olha a mulherzinha! Como está vaidoso...
Ou então quando Pedro ficava comovido com alguma coisa, como filme triste, que tem menininha sozinha, sem ninguém para cuidar dela, Joana já começava a caçoar:
- Vai chorar, é? E agora é de ódio, è?
Mas nas outras coisas eles eram bem amigos:
Jogavam cartas, viam televisão juntos, iam ao cinema...
Um dia...
Tinha chovido muito e os dois vinham voltando da escola.
De repente, Pedro gritou:
- Olha só o arco-íris!
- É mesmo! - disse Joana. - que grandão! Que bonito!
- Puxa! - espantou-se Pedro. - Parece que está pertinho! Vamos passar por baixo? Vamos!
Joana se riu:
- Tia Edith disse que se a gente passar por baixo do arco-íris, antes do meio-dia, homem vira mulher e mulher vira homem...
- Que besteira! - disse Pedro. - Quem é que acredita numa coisa dessas?
E os dois se deram as mãos e correram, correram, na direção do arco-íris. E de repente pararam espantados.
Eles estavam se sentindo esquisitíssimos!
- O que aconteceu? - perguntou Joana.
E a voz dela saiu diferente, parece que mais grossa...
- Sei lá! - disse Pedro.
Mas parou depressa, porque ele estava falando direitinho como uma menina.
- Aconteceu comigo uma coisa muito estranha... - resmungou Joana.
- Comigo também... - reclamou Pedro.
E os dois se olharam muito espantados...
E correram para casa.
Vocês podem imaginar o reboliço que foi na casa deles quando contaram o que tinha acontecido.
No começo ninguém estava acreditando.
- Que brincadeira mais idiota! - falou seu Setúbal.
- Vamos parar com isso? - disse dona Brites.
Mas depois tiveram que se convencer...
E naquele dia, no jantar, ninguém brigou para saber se menina podia ou não podia fazer isso ou aquilo.
Afinal ninguém sabia direito quem era quem...
O pai e mãe de Joana e Pedro ficaram conversando até de madrugada.
- Acho melhor nem contarmos pra ninguém - dizia seu Setúbal.
- Mas como é que vai ser? - argumentava dona Brites.
- Todo mundo vai notar! E podem até pensar coisa pior...
- E o nome deles? - perguntou seu Setúbal.
- Como é que fica?
- É mesmo! - choramingou dona Brites. - A Joaninha, meu Deus, que tinha o nome da minha mãe. Que Deus a tenha em sua glória, agora vai ter que se chamar Joano! Joano, Setúbal! Isso é lá nome de gente? E o Pedro, que horror! Vai ter que se chamar Pêdra. Pode uma coisa dessas?
- E tem um outro problema em que estou pensando - disse seu Setúbal. - Está bem que a gente vista o Joano de homem... afinal as mulheres hoje em dia só querem se vestir de homem... mas vestir a Pêdra de mulher... não sei, não! E se ele, quer dizer, ela, virar homem outra vez?
- Ah, sei lá! - disse dona Brites. - Jà nem sei o que pensar. Acho melhor a gente ir dormir...
No dia seguinte o problema da roupa foi resolvido com facilidade. Foi só vestir calça de brim nos dois, mais camiseta e tênis.
Joano e Pêdra estavam brincando e rindo, como se nada estivesse acontecido, disfarçando para que os pais não se preocupassem ainda mais do que já estavam preocupados. Mas assim que saíram de casa ficaram sérios. Eles não sabiam como é que iam fazer na escola.
Logo na esquina, Pedro, quer dizer Pêdra, que agora era menina, deu o maior chute numa tampinha de cerveja que estava no chão.
- Vamos parar co isso? - disse Joano. - Menina não faz essas coisas.
- E eu sou menina? - reclamou Pêdra.
- É, não é?
- Ah, mas eu não me sinto menina! Tenho vontade de chutar tampinha, de empinar papagaio, de pular sela...
- Ué, eu também tinha vontade de fazer tudo isso e você dizia que menina não podia - reclamou Joano.
- Mas é que todo mundo diz isso - disse Pêdra. - que menina não joga futebol, que mulher é dentro de casa...
- Pois é, agora agüenta! Não pode, não pode, não pode...
- Ah, mas agora eu posse chorar a vontade, posso dizer fita, posso ter medo de escuro...
Quando tiver que ir buscar água de noite você é que tem que ir... e quando eu quiser ver novela ninguém vai me chatear...
E eles ficaram ali, uma porção de tempo, discutindo a situação.
De repente Pêdra lembrou-se de que precisava ir para o colégio.
- Sabe de uma coisa? - disse Joano. - Eu é que não vou para escola desse jeito ridículo.
- Não sei por que ridículo. Ridículo estou eu, aqui, virado em mulher.
- E você quer ir para escola? - perguntou Joano.
- Eu não - respondeu Pêdra.
E sentou num murinho, muito desanimada.
Joano sentou também.
- Sabe de uma coisa? - disse Pêdra. - Nós temos é que encontrar o arco-íris pra passar por baixo outra vez.
- Mas não está nem chovendo - choramingou Joano, que agora era menino mas bem que estava com vontade de chorar...
- É, mas se a gente não procurar não vai encontrar. E se não encontrar vai ficar desse jeito o resto da vida!
Então Joano tomou uma decisão:
- Olha aqui. Eu vou mas não vou levar você, não! Vou é sozinho! Menina só serve pra atrapalhar.
Pêdra ficou danada da vida:
- Ah, é? Então vire-se! Eu também vou procurar sozinha e não quero conversa com você.
Vamos ver quem encontra primeiro.
E cada um foi para o seu lado, sem nem olhar para trás.
Os dois rodaram o dia inteirinho, mas não tinha caído nem uma chuvinha, de maneira que não havia jeito de encontrar o arco-íris. E no outro dia foi a mesma coisa, e no outro, e no outro.
E em casa as coisas estavam piorando cada vez mais. Um implicava com o outro, caçoava, proibia:
- Menino não pode!
- Menina não faz!
- Onde é que já se viu?
- Coisa mais feia!
- Vou contar pra mamãe!
Se o arco-íris não aparecesse logo...
Até que um dia eles acordaram e estava chovendo a maior chuva que já tinha visto.
Trovão, relâmpagos, água que não acabava mais.
Os dois ficaram torcendo para a chuva passar. E quando passou, saíram, como sempre um para cada lado, procurando o arco-íris.
Joano chegou para lá da escola, num lugar onde ele nunca tinha ido.
E já vinha voltando, desanimado, quando viu, bem na sua frente, o arco-íris.
Joano correu e passou por baixo.
Mas não aconteceu nada.
Joano continuava Joano...
Com Pêdra aconteceu mais ou menos a mesma coisa.
Andou, andou, até fora da cidade. E só quando vinha voltando é que encontrou o arco-íris, passou por baixo e nada!
Na porta de casa os dois se encontraram:
- Nada, hein? - perguntou Pêdra.
- Nadinha! - respondeu Joano.
- Que será que aconteceu? - disse um.
- Que será que não aconteceu? - disse o outro.
E os dois se sentaram - tão amigos! - e contaram, um ao outro, como é que eles tinham passado por baixo e nada tinha acontecido...
De repente Pêdra se levantou animada:
- Espere um pouco! A tia Edith disse que tinha que passar embaixo do arco-íris antes do meio-dia, não foi? Então, pra desvirar tem que ser depois do meio-dia, é ou não é?
- É mesmo! - disse Joano. - E tem mais uma coisa. Pra mudar de sexo nós passamos de lá pra cá, não foi? A gente vinha voltando da escola, não vinha? Pois agora a gente tem que passar daqui pra lá, pra desvirar.
Pêdra ficou olhando para Joano:
- Sabe que você é bem esperta para uma menina?
Joano respondeu:
- Você também é bem esperta... pra uma menina.
Os dois se riram como há muito tempo não faziam. E juntos saíram á procura do arco-íris.
E de repente lá estava ele.
Grande, brilhante, colorido, como um desafio.
Joano e Pêdra deram-se as mãos.
E correram, juntos, em direção do arco-íris.
E finalmente perceberam que alguma coisa, novamente, tinha acontecido.
Então riram, se abraçaram e abraçados começaram a voltar para casa.
Então Joana viu uma tampinha de cerveja na calçada.
Correu e chutou a tampinha para Pedro.
Pedro devolveu e os dois foram jogando tampinha até em casa...

A autora desenvolveu um texto explorando um sério estigma social: os papeis desempenhados na sociedade designados por gêneros. Quando cita:

"- Mãe, olha a Joana encarapitada na árvore.

Parece um moleque!
- Moleque é o seu nariz! - gritava Joana. -Você toda hora está em cima de árvore, por que é que eu não posso?
- Não pode porque é mulher! Por isso é que não pode. E não adianta vir com conversa mole, não! Mulher é mulher, homem é homem!"

Apresenta uma ideia ainda viva nos dias atuais a de que homens e mulheres são diferentes e, portanto, devido a características peculiares a cada um, cada qual deve desenvolver atividades a elas relacionadas, não pelas condições físicas ou psíquicas, mas por aquelas estabelecidas pelo senso comum. Dessa forma, explora essas diferenças no texto e propoe uma troca de lugares (entenda-se 'lugares' como 'essência') - um menino preso a um corpo de uma menina e uma menina presa a um corpo de menino. A partir daí afirma que, apesar das diferenças, cada um ou cada uma pode realizar qualquer atividade, desde que esteja disposto ou disposta. Esta afirmação vem da convivência diária onde os irmãos onde um realiza as atividades antes pertinentes ao outro - e vice-versa - com a mesma destreza ou até melhor, descobrindo novas possibilidades e explorando novos conceitos de vida e 'liberdade' e quebrando paradigmas.

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